Manipulação de resultados e a qualidade da informação financeira num contexto de pandemia

Desde a metade do século passado, diversos estudos empíricos procuram compreender as principais variáveis relacionadas com a prática de manipulação de resultados, nomeadamente, ao nível da motivação e da oportunidade. Estes estudos são um contributo importante para o desenvolvimento do normativo contabilístico e da auditoria, contribuindo também para que os diferentes utilizadores obtenham conhecimento e capacidade critica sobre a qualidade da informação financeira.

De entre as práticas de manipulação de resultados, destacamos o income smoothing e o big bath. O income smoothing, ou alisamento de resultados, é utilizado com o intuito de reduzir a volatilidade dos resultados, procurando iludir a perceção de risco dos stakeholders mais conservadores e sensíveis a lucros e perdas não uniformes ou irregulares ao longo do tempo. O principal objetivo é assim deslocar resultados de “anos bons” para “anos maus”.

Já o big bath pode ser considerado como uma estratégia de manipulação de resultados onde se transforma um ano de maus resultados em resultados ainda piores, procurando-se potenciar perdas quando a perceção de risco dos stakeholders já seria afetada de qualquer modo, não penalizando estes as entidades na proporção das perdas do ano. Nestes casos o foco é o futuro.

Esta prática é normalmente implementada num “ano mau” com o objetivo de criar reservas para os resultados de anos futuros, ganhando muitas vezes forma quando o novo órgão de gestão opta por relatar ganhos mais baixos no início de mandato, para que, em momentos posteriores, apresentem, com menos risco, um desempenho conforme os objetivos definidos.

Motivação para a prática de manipulação de resultados

As escolhas contabilísticas das entidades estão normalmente relacionadas com os custos dessas mesmas escolhas, assim como nas relações entre vários agentes, nomeadamente entre a empresa e os poderes públicos, os acionistas, a gestão e os credores.

As empresas com maior dimensão, e, por conseguinte, com maior visibilidade pública, tendem a fazer depender as suas opções contabilísticas, com o intuito de, por essa via, minimizar a possibilidade de uma intervenção pública adversa, bem como eventuais exigências salariais que possam impor determinados custos à organização. No que respeita às motivações da gestão, estas podem, em determinadas circunstâncias, não ser coincidentes com os interesses dos investidores, podendo a gestão agir de acordo com o seu interesse pessoal em detrimento do interesse do acionista.

Um dos mecanismos usados pelos acionistas para garantir que o comportamento dos executivos está alinhado com o seu interesse, é a celebração de contratos de remuneração variável que motivam o gestor a maximizar os objetivos dos acionistas, indexando, por exemplo, dentro de determinados limites, uma parte da sua remuneração aos resultados contabilísticos da empresa. Nestes casos, quando os resultados se encontram acima do limite máximo definido para o cálculo da retribuição variável, ou quando em qualquer circunstância ficariam sempre abaixo, a gestão pode encontrar motivação para diferir os resultados, para exercícios onde os resultados se situam dentro dos limites elegíveis, maximizando a sua retribuição variável.

No âmbito da relação entre acionistas e a gestão, a qualidade da informação financeira pode ainda ser influenciada por fatores relacionados com a estrutura de governo das sociedades. Diversos estudos empíricos, referidos pela literatura concluíram que, os efeitos da monitorização da gestão, através da presença de membros não executivos independentes nos Conselhos de Administração, são um efeito dissuasor de práticas de manipulação de resultados.

Se focarmos a análise noutros contextos económico-empresariais (pequenas e micro empresas portuguesas), onde normalmente não existe uma diferenciação clara entre a propriedade e a gestão das empresas, os principais destinatários da informação financeira são geralmente a administração fiscal e as instituições financiadoras e, consequentemente, os incentivos à manipulação de resultados dividem-se entre a minimização do gasto fiscal e o aumento do poder negocial junto do sistema bancário (com o objetivo de obtenção de crédito ou da minimização do seu custo). Nestes casos geralmente é tomado como referência o incentivo que proporciona benefícios mais significativos.

Diferentes formas adotadas na manipulação dos resultados

No estudo desta temática, é frequentemente efetuada a distinção entre vários tipos de manipulação, distinguindo-se dois grandes grupos, designadamente a manipulação contabilística e a manipulação real. Na manipulação contabilística, as decisões de manipulação configuram mera aparência contabilística na medida em que, ao contrário do que se verifica na manipulação real, não afetam as operações e transações realizadas pela empresa nem os fluxos de caixa. A gestão dos resultados é alcançada através de uma inadequada aplicação dos princípios contabilísticos geralmente aceites, na adoção de políticas ou na formulação de estimativas contabilísticas.

Já no que respeita à manipulação real, as decisões de manipulação passam por alterar as operações e transações realizadas pela empresa com o propósito de manipulação da informação financeira, tomando opções que normalmente não seriam tomadas no curso normal do negócio. Em algumas situações de manipulação real, para além do efeito de alisamento dos resultados ou big bath, pode-se ainda incorrer em gastos que não são compensados com ganhos futuros, representando esses gastos um custo inerente deste tipo de manipulação.

A manipulação real pode verificar-se também, por exemplo, através de um aumento ou diminuição das vendas motivado por fatores que não incorporam racionalidade económico financeira, nomeadamente, através de operações entre entidades relacionadas ou através de políticas de descontos ou condições de crédito que normalmente não se verificariam. A outros níveis da demonstração dos resultados, esta prática pode ainda verificar-se adiando ou antecipando investimentos ou, por exemplo, gastos com publicidade.

Amplitude normativa e a opção por critérios contabilísticos conservadores e agressivos

A subjetividade dos juízos da gestão em situações de incerteza proporciona o exercício da discricionariedade na observância do princípio da prudência (grau de aversão ao risco), possibilitando a manipulação de resultados através de critérios contabilísticos conservadores ou agressivos. A adoção de critérios contabilísticos conservadores ou agressivos afasta o relato financeiro do princípio da neutralidade que o deveria caracterizar.

A adoção destes critérios ocorre por exemplo quando estimamos eventos incertos, como projeções de resultados ou períodos de vida útil. Podem ocorrer ainda quando são avaliados os riscos sobre o desfecho de um processo judicial onde uma entidade é ré ou quando são estimados os riscos de cobrança dos saldos das contas a receber com vista ao eventual reconhecimento de imparidades ou ainda no que respeita às estimativas do valor realizável líquido dos inventários ou dos ativos não correntes detidos para venda.

Ao nível da escolha das políticas contabilísticas, por exemplo, a opção pelo FIFO, em períodos de inflação elevada pode provocar uma sobreavaliação dos resultados, na medida em que as saídas podem ser valorizadas a preços inferiores aos dos inventários (específicos). Por outro lado, a aplicação do custo médio ponderado origina menores riscos na valorização das saídas dos produtos em armazém face à volatilidade de preços, apesar de o custo atual de um dado produto, ao ser ponderado com um preço mais antigo, poder vir a ser substancialmente alterado face ao seu valor específico.

Ainda ao nível das políticas contabilísticas realçamos também, por exemplo, o nível de juízo da gestão necessário quanto ao reconhecimento do rédito (contexto IFRS 15) quando a adoção de uma política depende da avaliação sobre se num contexto de contratos com clientes o rédito deve ser reconhecido ao longo do tempo ou num determinado momento do tempo, ou ainda se deve ser reconhecido com base no método das saídas (entregáveis ao cliente) ou no método das entradas (consumo de recursos).

A pandemia e a qualidade da informação financeira

Apesar do desenvolvimento do normativo contabilístico, a informação financeira serve para reportar sobre o desempenho das organizações, pelo que as normas têm necessariamente que permitir o uso de juízos por parte da gestão para que seja possível adaptar o reporte económico-financeiro aos negócios, aspeto que implica que a informação financeira possa incorporar um determinado nível de subjetividade. Neste contexto, práticas menos apropriadas podem ser de difícil perceção para os utilizadores das demonstrações financeiras, constituindo assim oportunidade para o reporte de informação que não reflete de forma apropriada o desempenho das organizações. A não evidenciação nos resultados da volatilidade dos negócios, influência as decisões de investidores, financiadores e outros credores que percecionam, nomeadamente, riscos de falência maiores decorrentes de resultados instáveis.

No momento de pandemia que atravessamos hoje, estas motivações podem ganhar outro tipo de intensidade quer para quem tenha sido afetado muito negativamente no seu desempenho, quer para quem tenha sido afetado favoravelmente.

Apesar de no longo prazo estas práticas de manipulação de resultados tenderem para a reversão de efeitos, para além das distorções no tempo, implicam riscos nomeadamente quanto à capacidade de reverter esses efeitos em exercícios futuros. Ainda que os efeitos da manipulação não se tornem permanentes, a informação financeira alisada não reflete a imagem verdadeira e apropriada da posição financeira de uma organização.

Confere qualidade à informação a compreensibilidade daqueles que a querem analisar, distinguindo recursos económicos eficientes, demonstrando os resultados do exercício da gestão da entidade, e a responsabilidade desta sobre os recursos que lhe foram colocados à disposição.

InExecutive Digest